mortos e fantasmas

A própria eletricidade deu um fim nisso. Quando lembranças e sonhos, mortos e fantasmas se tornam tecnicamente reprodutíveis, então a força da alucinação se torna desnecessária, tanto nos escritores quanto nos leitores. Nosso reino dos mortos deixou os livros nos quais habitou por tanto tempo. Não é mais “só por meio da escrita que os mortos permanecem no pensamento dos vivos”, como certa vez escreveu Diodoro Sículo. O nosso reino dos mortos transformou-se num espetáculo midiático. (KITTLER, 2019, p.33)

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Quando eu descobri que era existencialista

Entre os 20 e 23 anos, tive um casal de amigos que, melodicamente, vou chamar de Rubens e Raquel. Por diversos fins de semana, saíamos radiantes com a ideia de que éramos capazes de inventar uma noite, um jeito de fazer da noite uma noite do nosso tempo, e de fazer esse tempo ser mais nosso. No fundo, nos sentíamos prontos para antecipar o tempo que, de alguma maneira e em algum momento, viria a ser o tempo dos outros. Evitávamos repetir os lugares, os percursos e até a combinação das palavras de “todo mundo”, porque, assim, estaríamos justamente mostrando que era possível, e desejável, fazer diferente, ser diferente - sendo como a gente.

Numa dessas noites, nos imaginando longe do baile branco fora da média, de onde particularmente eu nunca realmente sairia, sentamos para comer num café chique, depois de ter filmado alguns depoimentos em bares, filas e calçadas, sobre o significado do amor. Se existe, o que é? Se não se define, ainda seria?

Raquel e Rubens, talvez nessa ordem, amaram-se. Ou acreditaram que estavam se amando. Ou tanto faz.

Os registros sobre o amor que capturamos em VHS estragaram no quarto dos fundos de uma casa grande no Butantã. Mas a conversa que tivemos, os três, continuou, ou eu continuei, como solilóquio, conforme aquilo bateu, e continua a bater, em mim.

O Rubens declarou que nós éramos existencialistas. Engatinhar dos anos 2000. São Paulo. Era um pedaço pequeno de São Paulo, era a procura, numa outra Paulista, pelo lado B da cidade com mais lados que já vi no mundo. Raquel e eu estávamos caminhando para terminar nossas faculdades; Rubens nunca foi estudar depois do supletivo. Mas era quem mais tinha lido entre nós, e entre os nossos de quem nos queríamos diferentes.

“Nós temos certeza de que, sendo o que somos, criamos alternativas para a maioria em quem não nos reconhecemos”, disse ele, da maneira calma com que sempre disse as coisas que disse pra mim. “Não estamos amarrados a nenhuma ideia que quiseram pra gente; vamos fazer da vida o que a vida que a gente imagina pode ser”.

Se existe essa vida, o que foi? Se não se define, teria sido?

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Quando dizemos que o homem faz a escolha por si mesmo, entendemos que cada um de nós faz essa escolha, mas, com isso, queremos dizer também que ao escolher por si, cada homem escolhe por todos os homens. Com efeito, não existe um de nossos atos sequer que, criando o homem que queremo ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem conforme julgamos que ele deva ser.
— Sartre, 1945

A literatura é um acerto de contas com o que acaba

Com tudo o que faz da gente o que a gente imagina ser.

***

Sempre sento para escrever, sobre um episódio inspirado no que eu quis que fosse, do jeito que eu quis, ou em alguma tentativa pura de invenção, impossível mas heroica, e travo uma batalha, fatalmente fracassada, contra mim mesmo, contra a incapacidade que tenho, que temos, de ser pra sempre e, assim, dispensar artifícios que esperam prolongar o que tem fim.

Penso num casal deixando uma mesa, o bar em Quito; têm jeito e cara de estrangeiros, na Plaza Foch, querendo achar a América Latina cosmopolita e tramar um futuro onde o novo nem sempre é desenvolvido, e as margens do tempo oscilam como a auréola ao redor dos luminosos que vendem bebida, hospedagem e estações de internet. Ela acende um cigarro, não sabe se pode; faz diferença nenhuma, porque ela não fuma. Ele pensa na cantada que levou, de um homem, e de manhã, no ponto onde esperava o tour que sairia para o topo de um vulcão. Resvalam as mãos umas nas outras, apressam o passo até o espaço das mesas recuadas; divertem-se com o balanço que rege os corpos dos outros, corpos cheios do mesmo sotaque que perceberam, então, na voz e nos tons de quem tempera bem o peixe e recomenda literatura jovem boliviana.

Estão achando graça em dançar, colar o rosto e respirar a respiração da boca de cada um; um vai e um vem, uma régua que nivela o salão, subindo todos para uma mesma altura, onde o céu conta as pessoas como peças de uma constelação. E, sendo isso, só isso, é tão isso que ameaçam esquecer a crueza do dia seguinte e das manhãs por vir, dias depois, na rotina de trabalho e na comida por quilo. Ouvindo o pop em francês, quadril pra frente e pra trás; foi na década de 80, assim, mas, sem saberem, era de novo, com eles, pela primeira vez, numa noite que não volta, não voltaria jamais.


Resíduos e escombros

La existencia del hueco aparentemente insalvable, el gap, siempre presente entre una teoría y sus posteriores aplicaciones en la sociedad real, aplicaciones que casi nunca tienen que ver con las teorizaciones originales pues, necesariamente, el trueno llega mucho más tarde que el rayo, y para colmo totalmente trasmutado en “otra cosa” - el aura se va y queda la huella [...]

Los sistemas complejos tal como aquí los plantearemos vienen a ayudar a rellenar ese hueco, ese gap extremadamente vivo y orgánico - que es aparentemente residual, puro escombro o basura -, que hay entre toda teoría y su experiencia, hueco que la mismísima Línea Año Cero de las cosas, línea que separa lo proyectado de lo ejecutado.
— Agustín Fernández Mallo (2018)
Opened by Customs, Kurt Schwitters (1937–8)

Opened by Customs, Kurt Schwitters (1937–8)

Beckettéricas, ou esperando o robot

Tem essa ideia, tantas vezes acusada de pessimista, e pós-moderna, de que a esperança diminui num passo inverso à proliferação das revoluções técnicas e da síntese de inteligências que complementariam, superando, a nossa. A frustração com aquilo que essas aquisições não trouxeram, se é que não trouxeram, pode ter uma face decepcionada, mas, numa perspectiva de contramão, aumenta a desesperança justamente porque, antes, lança a esperança num degrau vertiginoso. Quanto mais alto, maior o tombo.

Já há algum tempo, passeando pelo Maps, fico interessado no número de construções, nas nossas cidades, reféns de algum tipo de promessa. Aliás, quando visito uma cidade, quase tudo nela me põe em contato com o plano e a expectativa de quando apareceu. Um drogaria, um banco, um hospital, uma igreja, ou uma lotérica: tudo, no homem, é um exercício de fé. Saber que o nosso mundo tem fim pauta muita coisa, não tudo, na vida.

Então, esperando pelo fim, fatal, esperamos, em chave de combate, por um amontoado de acontecimentos e realizações que, às suas maneiras, adiam o confronto com a falta definitiva de tempo para levantar e imaginar de novo. É assim que surgem as Beckettéricas e a espera pelo robot. Diante de prints com pessoas investindo expectativa em casas de jogo e sorte, insiro diálogos da ainda belíssima peça do Beckett, Esperando Godot. Se chega? Só Deus dirá.

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Em breve, não sei se em tom de resgate ou resignação, as montagens vão circular em lambes colados por São Paulo. Até.